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Costumamos dizer que é nossa consciência humana que nos diferencia dos outros animais. Contudo, o que realmente é consciência humana e em que intensidade ela é condicionada pelas Moralidades que engendramos?
Neste ponto, é importante diferenciar Amoral de Imoral. Alguém age de modo Amoral quando desconhece a diferença entre certo e errado, ou baseia suas ações em princípios que não estão diretamente relacionados à moralidade. Por exemplo: você pode fazer um julgamento moral e dizer que “dar dinheiro para a caridade é correto” – e jamais dar qualquer dinheiro para caridade. No fundo, você não acha errado não dar dinheiro para caridade e tampouco faz questão de abrir mão de seu dinheiro para doá-lo periodicamente aos necessitados. A verdade é que fazer caridade nunca foi um imperativo para você, e sua opinião manifestada não passava de uma vontade em sentir-se momentaneamente bem no silêncio de sua nobreza epidérmica ou de ser socialmente bem-visto. Isso não lhe torna Amoral, apenas hipócrita ou imoral.
Um sujeito Imoral é alguém que sabe a diferença entre certo e errado, porém, ainda assim, escolhe seguir o que é considerado errado. A imoralidade é, portanto, uma liberdade negativa e pervertida da Moralidade vigente.
Quando agimos de modo imoral – não doando dinheiro para caridade, por exemplo -, a Consciência se manifesta produzindo um sentimento de culpa. Entretanto, é possível e até frequente sentir culpa pelos motivos errados: um monge com impulsos sexuais fisiológicos pode penitenciar-se por reconhecer-se lascivo; uma pessoa infeliz em seu relacionamento pode desejar terminar tudo, mas evita fazê-lo, pois se sente presa em um sentimento prévio de remorso pela possibilidade de causar sofrimento ao outro; um vegetariano emotivo experimenta culpa por não aceitar que a Vida não é exatamente um lugar inofensivo – afinal, para sobrevivermos, devemos consumir outros seres vivos, sejam eles vegetais ou não. Enfim. A doutrina da culpa é um dispositivo que milhares de religiões, seitas, ideologias e governos souberam explorar muito bem nos últimos milhares de anos, e sua percepção nem sempre é insuspeita, assim como o sentimento de culpa nem sempre é legítimo.
Além das influências dos costumes e do adestramento por um mosaico de códigos Morais, a consciência também está sujeita às misérias do organismo: retire dos humanos a segurança, a comida e o abrigo e você verá quão rapidamente nos tornamos selvagens em nossas urgências e maleáveis em nossas Moralidades. Por tudo isso, fiar-se à consciência como parâmetro para calibrar nossa bússola Moral não é exatamente prudente.
Se aquiescermos que o Realismo Moral é um representante fidedigno dos fatos Morais, mas simultaneamente aceitarmos que a fé mística e consciência humana são ferramentas ruins para discernir entre o certo e o errado, como poderíamos estabelecer com confiança o que é Bom e Correto?
Quando, sob o peso de suas evidências, a Ciência chutou a religião e as superstições para escanteio e assumiu a paternidade de todo o Conhecimento humano moderno, fomos levados a uma doutrina metafísica (as únicas coisas que existem são as coisas da Natureza) e epistemológica (tudo que podemos saber acerca da realidade do mundo vem de aplicações do método científico) que transformou o Realismo Moral tradicional em algo que passamos a chamar de Naturalismo.
O Naturalismo foi uma forma que o Realismo Moral encontrou para romper o cordão umbilical que o prendia à necessidade de um teísmo que o validasse, imprimindo, ao mesmo tempo, aos princípios Aristotélicos, Deontológicos, Consequencialistas e Objetivistas um passo mais alinhado ao método científico. O termo foi popularizado a partir da primeira metade do século XX, quando a filosofia finalmente procurou alinhar-se à biologia, primatologia, antropologia, psicologia e neurociência, alegando que a realidade está saturada pela Natureza e nada existe de sobrenatural: somos perfeitamente ser capazes de emitir julgamentos Morais sem nos apoiarmos em autoridades externas como reis ou deuses.
Os não-naturalistas defendem que conhecemos os fatos Morais a partir de uma “intuição Moral” que nos oferece um acesso direto ao Reino da Moralidade. Todavia, admitir este misticismo não é exatamente um exercício de raciocínio, mas uma embaraçosa demonstração de fé em entidades ou propriedades transcendentais. O Naturalismo apela para uma explicação mais simples que isto, aceitando que nossa Moralidade deriva de emoções, tradições, crenças e costumes, não obstante transformando-a em um tipo de conhecimento prático que pode ser aprimorado com a aplicação de inteligência, Lógica e Razão. Segundo o cordão dos Naturalistas, a observância do mundo natural aumenta nosso conhecimento Moral da mesma forma que aumenta nosso conhecimento científico.
O Naturalismo tem ganhado adeptos graças ao seu robusto senso de objetividade, permitindo que a Moralidade seja testada quando à sua legitimidade, salvando o Realismo Moral dos mistérios metafísicos que cercavam suas premissas. Ao afirmar que as pessoas são capazes de reavaliar a Moralidades sem qualquer aconselhamento sobrenatural, o Naturalismo nos libertou para discordar dos dogmas religiosos sem necessariamente contradizê-los. Ele apenas compreendeu que as culturas religiosas são uma das várias fontes de conhecimento Moral, contendo um grande acúmulo de experiências humanas sobre o que compõe uma vida Boa e Correta, mas que estas culturas não representam a melhor Moralidade possível.
Uma vez que boa parte de nossas crenças Morais resultam de etiologias evolucionárias e não de fatos Morais per se, o primeiro desafio do Naturalismo foi definir o que exatamente é ser Bom e Correto. A Natureza não é explicitamente normativa; ela não rotula suas Verdades substantivas. O que é bom ou mau, ou certo ou errado, não está escrito em árvores, desenhado no céu ou perceptível em análises do solo. Então como os Naturalistas determinaram o que poderia ser considerado Bom e Correto?
O grande passo neste sentido foi dado nos anos 1980 por Richard Boyd, Nicholas Sturgeon e David Brink, um grupo de pesquisadores da Universidade de Cornell (EUA). Eles sugeriram o seguinte (1,2,3,4,5,6): imagine por um instante o conceito de saudável. Estar saudável não é sinônimo de estar corado ou caminhar com passos firmes, e estes sinais visuais tampouco são suficientes para considerar alguém saudável: eles são apenas indicadores de alguém saudável. Desfrutar de saúde é um estado complexo que envolve um funcionamento adequado do organismo como um todo, e a ausência ou presença de muitas coisas (alimento, água, doenças, etc.) pode causar ou impedir a saúde. Portanto, estar corado ou caminhar com passos firmes são indicadores de alguém saudável, pois são propriedades tipicamente causadas pela saúde.
Boyd, Sturgeon e Brink consideraram que o conceito de Bom e Correto é exatamente como o conceito que temos de saudável: não é algo diretamente observável ou um sinônimo de sinais e evidências simples, mas uma propriedade funcionalmente complexa que resulta de causas e em consequências características. Muitas coisas podem ajudar ou impedir alguém de agir de modo Bom e Correto – como dor, honestidade ou desconfiança -, e muitas coisas ocorrem quando agimos de modo Bom e Correto – como aprimoramento do caráter com progresso do conhecimento, florescimento humano, entendimento político e paz.; e podemos observar a presença do que é Bom e Correto a partir destes indicadores.
Seguindo o raciocínio nos pesquisadores de Cornell, é fácil perceber que a premissa fundamental do Naturalismo é uma forma de Neo-Aristotelismo. Como discutido anteriormente, de acordo com Aristóteles, a Virtude corresponde ao que é Bom e Correto, e o virtuosismo é uma correspondência à função: todas as coisas vivas possuem uma função determinada pela Natureza; quando elas operam em concordância com suas funções, estão agindo com Virtude e podem ser consideradas boas.
Por exemplo: a função mais importante de um relógio é marcar o tempo. Não interessa muito o material de que ele é feito ou sua aparência. Desde que seja capaz de marcar o tempo com precisão, então pode ser considerado um bom relógio. Se o relógio não é capaz de realizar sua função com eficiência, ele pode ser considerado um mau relógio.
Os órgãos do corpo também podem ser definidos pelo seu funcionamento: o coração é um órgão cuja função é bombear o sangue constantemente. Os pulmões são órgãos que funcionam para respirar. Se seu coração e seus pulmões cumprem essas funções com eficiência, então podemos dizer que você tem um bom coração e bons pulmões. Porém, quando o coração não é capaz de realizar sua função com eficiência, ele pode ser considerado um mau coração. E o mesmo vale para os pulmões e outros órgãos em seu corpo.
Pessoas que trabalham podem ser igualmente definidas segundo seu funcionamento: um professor é um profissional que ensina. Se os alunos de um professor de fato aprendem o que ele está ensinando, então o professor está cumprindo sua função e pode ser considerado um bom professor. Porém, quando um professor não é capaz de realizar sua função com eficiência, ele pode ser considerado um mau professor.
Se uma goiabeira dá goiabas, então ela é uma boa goiabeira. Se uma abelha melífera produz mel, então ela é uma boa abelha. Finalmente, se um humano age segundo sua função neste mundo, então ele é um bom humano.
A partir destes axiomas aristotélicos de Virtude, o Naturalismo Moral postula que um humano age de modo Bom e Correto quando: (1) suas partes e operações contribuem de modo característico para a sobrevivência e reprodução de sua espécie; (2) ele completa esta tarefa usufruindo prazer e contentamento, sem empregar violência ou causar danos ou dor a si mesmo ou a outrem; e (3) funciona adequadamente dentro do grupo a que pertence.
Evidentemente, nem a consciência humana, tampouco a natureza humana per se, são guias úteis para a Moralidade, pois não possuímos apenas capacidade para cooperação e filantropia, mas também tendências egoístas e mesquinhas. Então quais aptidões devem ser incentivadas ou desencorajadas? E em que intensidade? A resposta está no estudo da história, no diálogo, no debate e na lembrança permanente de que somos todos humanos, com necessidades, vontades, personalidades, intuições e temperamentos mais ou menos parecidos. Por isso, a compreensão Naturalista é um tanto temporal: apesar de Realista e Normativo com uma boa pitada de Consequencialismo Utilitário, o Naturalismo não garante quais consensos irão perdurar – e este é o preço a se pagar por não possuir um garantidor externo da Moralidade. Não obstante, o Realismo Moral Naturalista parece sem dúvida alguma superior às demais formas de Moralidade.
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Referências e Dicas de Leituras citadas
1. Boyd R. Scientific Realism and Naturalistic Epistemology. PSA: Proceedings of the Biennial Meeting of the Philosophy of Science Association. 1980:613-662.
2. Boyd R. How to be a Moral Realist. In G. Sayre-McCord (ed.), Essays on Moral Realism. Cornell University Press 1988:181-228.
3. Sturgeon NL. Ethical Naturalism, in The Oxford Handbook of Ethical Theory (2007).
4. Sturgeon NL. Naturalism in Ethics, In Edward Craig (ed.), Routledge Encyclopedia of Philosophy. Routledge (1998).
5. Brink DO. Realism, Naturalism, and Moral Semantics. Social Philosophy & Policy 2001. 18: 154-76.
6. Brink DO. Aristotelian Naturalism in the History of Ethics. Journal of the History of Philosophy 2014. 52: 813-33.
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