A Moralidade é o tipo de coisa que não pode ser testada pela ciência. Não existe uma engenhoca tecnológica ou um reagente de laboratório capaz de medir a retidão ou o desvio moral de uma pessoa. Isso nos deixa à mercê dos julgamentos particulares: é você quem terá que decidir o que é razoável e o que não é.
Provavelmente, você já tem sua própria coleção de crenças, sua visão de mundo, que engloba o que deveria e o que não deveria fazer. Talvez se lembre dos conselhos de seus pais ou de seus avós, ou talvez apenas siga as leis do lugar onde você vive. Mas o que fará quando for confrontado com uma escolha moral que não está prevista na lei ou que nunca foi mencionada pela sua família?
A filosofia da moralidade não aborda somente sobre quais ações são certas ou erradas, mas O QUE FAZ estas ações serem classificadas desse modo. A questão central é: DE ONDE vêm os conceitos de moralidade?
UMA PLANTA E DEZ RAÍZES POSSÍVEIS
Você pode nunca ter parado para pensar porque algumas ações são boas e outras ruins, mas tenho certeza de que isso nunca lhe impediu de reconhecer a diferença. Como tomou a decisão ao classificá-las? Foi por sorte, por obediência às regras, por intuição….?
Vamos analisar algumas possibilidades:
- CULTURA. Algumas pessoas acreditam que a moralidade deriva da cultura e que qualquer conceito popularizado em sua comunidade está certo; e tudo que for proibido pela comunidade, é errado. Dessa raiz, brotou o preconceito.
- RELIGIÃO. A religião pode agir de modo semelhante à cultura popular, mas suas convenções tendem a ser mais específicas, explícitas, documentadas, rígidas e com promessas de consequências terríveis. Dessa raiz, nasceram os dogmas.
- INTUIÇÃO. Alguns pressupõem que a moralidade vem de uma voz interna, de uma percepção individual do mundo. Neste caso, os sentimentos seriam os guias da moral, discernindo entre o certo e o errado. Para entender os riscos da intuição como norteadora da moralidade, recomendo a leitura de Rolf Dobelli, “A arte de pensar claramente”.
- DOR E PRAZER. O que lhe dá prazer, é certo; o que lhe causa sofrimento, não é. Este é um sistema bem simples baseado em recompensas, e é fácil perceber como que a moralidade baseada em um mecanismo desses pode dar muito, mas muito errado. É utilizando este princípio de moralidade que os psicopatas se livram dos seus sentimentos de culpa.
- INTERESSES. Se algo atende aos seus interesses, é certo. Se ele impede que você alcance seus interesses, não é. É utilizando este princípio de moralidade que incontáveis políticos e sociopatas se livram dos seus sentimentos de culpa.
- RACIONALIDADE. Tudo que é racional, é certo. Tudo que não é racional, é errado. A racionalidade pode parecer uma peneira escrupulosa para a moralidade, mas não é imaculada. Quando excessiva, resulta em Reducionismo.
- DIREITOS. Você pode acreditar que nascemos com um conjunto de direitos naturais básicos e que a preservação desses direitos é certo. Violá-los, é errado. Este modo de produção da Moralidade conduz à crença de que existem limites para o livre arbítrio, e que leis necessárias e imutáveis governam a vontade humana – e este é o princípio do Determinismo.
- RELACIONAMENTOS. Para muitos, os relacionamentos interpessoais são a coisa mais importante da vida e serão utilizados como uma balança para decidir entre o que é certo ou errado: boas ações são aquelas que promovem e apoiam esses relacionamentos, e más ações são todas aquelas que desgastam seus laços. Em O Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro chamou essa prática de Cunhadismo.
- CARÁTER. Talvez você ache que o que determina se uma ação é certa ou errada seja a pessoa que a está realizando. Pessoas boas fazem coisas boas, pessoas más fazem coisas más, e a impressão deixada pelo caráter de cada um seria suficiente para tornar algo bom ou ruim. A idolatria, a veneração, o ódio e a antipatia nascem desse viés de moralidade.
Agora faça um teste: pergunte para as pessoas que você conhece de onde elas acham que vem a moralidade. Você verá que as definições que lhe serão oferecidas fatalmente cairão dentro de uma das 10 possibilidades acima.
DOGMAS PARA TORCER O NARIZ
E se eu lhe dissesse que não existe nada certo ou errado? Que não existe bom ou mau? E se eu lhe dissesse que existe apenas uma coisa chamada de “a opinião mais popular”?
A moralidade é uma invenção humana, aplicável apenas a seres humanos. É um conjunto muito bem direcionado de regras cujo objetivo é tornar os humanos mais civilizados. Podemos ter dividido as coisas entre boas e más, mas isso não significa que essa divisão exista de fato na Natureza.
Como a moralidade é baseada em percepções, e não na Verdade Absoluta, suas fronteiras maleáveis insistem em mudar de lugar com o passar dos anos. Houve um período em que dizer que a Terra girava em torno do Sol era uma blasfêmia digna de punições severas, e qualquer um que propusesse isso era considerado louco ou herege.
Apesar do canibalismo, da tortura, do incesto, da pedofilia e dos genocídios serem considerados errados, eles já foram aceitáveis em períodos diversos da história de nossa espécie neste planeta. Até bem recentemente – ou mesmo nos dias de hoje -, a homossexualidade e o ateísmo eram considerados “’moralmente errados” em muitas sociedades. Maconha e prostituição são ilegais na maioria dos países. Quem sabe que direção irá tomar a “opinião mais popular” amanhã?
Você pode até torcer o nariz na frente de ideias assim, classificando-as como absolutamente inaceitáveis pois violam seu conjunto íntimo de verdades deduzidas, mas deve compreender que os seres humanos estão sujeitos a um brutal condicionamento cultural desde a mais tenra infância. Este condicionamento é essencial para manter a nós, predadores carnívoros inteligentes e oportunistas, separados da selvageria que nos constitui. Isso significa que a moralidade é algo ensinado desde a infância – não é algo que recebemos pronto em nossos genes.
DA ARROGÂNCIA À VIGILÂNCIA
“Ah”, você dirá, “assassinato, estupro e violência são essencialmente errados, não há como negar isso”. Então lhe peço que observe a natureza. Os animais frequentemente matam-se uns aos outros por território ou por acasalamento. Orangotangos, golfinhos, alguns patos e cavalos selvagens já foram descritos forçando fêmeas ao coito. Leões machos matam os filhotes que não lhes pertencem como uma maneira de forçar as leoas a entrarem no cio. Nós não chamamos isso tudo de “errado”, chamamos de “sobrevivência do mais apto”.
A maioria dos animais não permite que indivíduos externos aos seus clãs participem de seus grupos. Entre nós, chamamos isso de “discriminação racial”. Neste meio tempo, a Natureza se manifesta com terremotos, enchentes, tufões, furacões, erupções vulcânicas. Não chamamos isso de “violência”, não consideramos essas convulsões do planeta como forças boas ou más: são apenas “forças da natureza”.
Não estou defendendo que estupro, assassinato, racismo e outras formas de violência sejam corretos, mas, se os seres humanos não existissem, será que nossos conceitos de moralidade teriam alguma significância?
Quando nos tornamos animais inteligentes, inventamos a moralidade para evitar que nos matássemos indiscriminadamente; quando nos tornamos arrogantes, passamos a acreditar nessa moralidade como um valor universal.
Como indivíduos, não somos capazes de perseguir objetivos elevados sem algum tipo de moralidade. Um mundo sem moralidade seria uma terra devastada por abusos, dominações, massacres e vinganças. A ética, filha da moralidade, é uma exímia negociadora de conflitos e patrocinadora de relacionamentos.
Necessitamos dos biombos e tabiques da Moralidade para sobrevivermos a nós mesmos. Todavia, vale à pena questionar sempre ONDE essas cercas foram colocadas – e manter vigilância quanto a QUEM entregamos essa incumbência. Muito mais que um dilema moral, esta é a tarefa capital que se apresenta diante de qualquer pensador livre.