O CASO DAS CADEIRINHAS E OS CONCEITOS DE LIDERANÇA

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Recentemente, o Governo Federal decidiu alterar a lei que normatiza o uso de equipamentos de segurança crianças nos automóveis. Mais especificamente, em sua proposta, o Presidente Jair Bolsonaro defendeu a obrigatoriedade da presença da “cadeirinha” para crianças, mas advogou contra a aplicação de multas no caso de não-uso do equipamento.

Incontáveis discussões se seguiram à notícia, mas uma coisa ficou evidente no Caso das Cadeirinhas: muito mais que uma medida política ou de saúde pública, a “cadeirinha” levanta um debate crucial em nossos tempos. E este debate é sobre Liderança.

Mas Exatamente do que estamos falando quando nos referimos à Liderança? Quais tipos de Liderança existem? E quando uma Liderança se torna legítima?

Para começo de conversa e para fins didáticos, podemos dizer que existem 5 tipos fundamentais de Liderança: Familial, Moral, Consensual, Instrumental e Pessoal.

LIDERANÇA FAMILIAL

Esta é a Liderança que decorre de vínculos com pessoas de nosso convívio mais íntimo. É a Liderança que pais e mães exercem sobre seus Filhos, e que irmãos, tios, primos e sobrinhos podem ter uns sobre os outros.

Uma Liderança Familial traz implícita a obrigação da obediência e o risco de punição aos seus infratores.

Pessoas criadas em lares onde a Liderança Familial foi exercida com EXAGERO, enfrentarão uma enorme dificuldade para se tornarem adultos independentes. Criadas de modo supervigiado e superprotetor, soterradas durante anos em julgamentos severos, serão inseguras em suas opiniões e desempenhos, sempre buscando alguém que a aprove a retidão de suas condutas.

Em contrapartida, pessoas criadas em lares onde a Liderança Familial foi exercida com INSUFICIÊNCIA, enfrentarão uma enorme dificuldade em seguir mais tarde os ditames da Liderança Instrumental imposta pela sociedade.

Não raramente, as prerrogativas da Liderança Familial trazem consigo doses generosas de Liderança Moral.

LIDERANÇA MORAL

Esta é o tipo de Liderança que é reconhecida por estar alinhada aos nossos princípios e valores. Podemos reconhecê-la nas pessoas que foram nossos cuidadores durante a infância, em líderes religiosos, em grandes pensadores, nos amigos mais próximos e em vários líderes de equipe.

Assim como qualquer forma de liderança, a Liderança Moral tem seus riscos, e o principal dele reside na submissão sem questionamentos.

A Liderança Moral, com uma frequência acima do aceitável, impõe dogmas e axiomas que flertam com a incongruência, a hipocrisia e até mesmo a crueldade. Porém, uma vez que já assumimos em nossas mentes que essas recomendações são lícitas, seguimos os Líderes Morais como um gado – ainda que o caminho leve à nossa destruição.

Os desdobramentos da cegueira pela doutrinação da Liderança Moral podem ser claramente percebidos na perseguição romana aos cristãos (que persistiu até 313 d.C., quando Constantino I legalizou o cristianismo como a religião oficial do Império Romano); na Epidemia de Caça às Bruxas (século XVII, nos EUA); nas crenças que apresentam “sacrifícios humanos” como provas valiosas de Respeito (diversas religiões na América Pré-Colombiana); nos massacres religiosos; nas seitas que promoveram suicídios em massa; nos atentados terroristas de “inspiração” teocrática e em transtornos psiquiátricos como a Folie a Deux.

LIDERANÇA CONSENSUAL

Liderança Consensual é a forma de liderança cuja validade é de alguma maneira determinada pela aprovação da maioria. Este é o caso da Liderança exercida pelos Estados Democráticos e por várias instituições internacionais, como o Conselho de Segurança da ONU. Também é o tipo de Liderança que é exercida por quem possui conhecimentos avançados em sua área de atuação e diversos líderes de equipes empresariais.

Em termos de Sociedade e Estado, a Liderança Consensual não apenas promove a justiça: ela a estabelece. É por consenso que determinamos a maneira como os indivíduos se relacionarão entre si. É a Liderança Consensual que determina o que são leis, direitos, dinheiro, propriedade privada, liberdade, jurisdição e crime.

Apesar de sua utilidade, a Liderança Consensual possui dois grandes problemas:

Primeiro: assim como ocorre na Liderança Moral, a Liderança Consensual sofre com a possibilidade de se degenerar em Falácias da Autoridade, produzindo obediência a decisões erradas devido ao nosso julgamento equivocado quanto às capacidades de nosso “especialista” preferido.

Segundo: não existe uma imposição explícita para que devamos obedecer a uma Liderança Consensual.  A Liderança Consensual necessita da tolerância e admite o Relativismo e o Ceticismo (o acordo é que se deve permitir o desacordo), podendo ser refutada no momento em que mudamos nossas concordâncias.

A Lei, por exemplo, não é o “valor Moral supremo”. Na verdade, ela sequer é um “valor Moral”, mas deriva deles. Assim, através da Liderança Consensual, já produzimos sociedades cujas leis consideraram a poligamia, os sacrifícios humanos, o canibalismo, o espancamento de mulheres, a mutilação genital de meninas, a guerra, a escravidão, o genocídio, a circuncisão, a castração masculina e o incesto, ações perfeitamente aceitáveis.

É precisamente esta volatilidade (e a ameaça de propensão para a Imoralidade) que drena grande parte da capacidade de orientação, transformação, condução e governança da Liderança Consensual. E foi por isso que criamos contratos para nossos comércios, regras de conduta para nossas empresas e Constituições para nossos países.

Não obstante, ciente da fragilidade dos acordos, o Estado cuidou de armar sua própria Liderança Consensual com a Liderança Instrumental.

LIDERANÇA INSTRUMENTAL

Esta é forma de Liderança concedida a alguém para que esta pessoa (ou instituição) submeta as pessoas a fazer o que já é considerado sua obrigação.  Este é o caso da Polícia, da Justiça, das Forças Armadas, das contas que você tem para pagar e do aviso que aparece no seu celular comunicando “bateria baixa, favor conectar o aparelho a uma fonte de energia”. Também é o tipo de Liderança exercida em regimes ditatoriais e nas monarquias absolutistas.

Mais ou menos como a Liderança Familial, a Liderança Instrumental não tolera questionamentos: ela demanda obediência irrestrita.

Nas mãos do Estado, a Liderança Instrumental tem uma autorização formal para o emprego da violência. Isto está embutido no próprio conceito de “instrumental”.

Apesar de ser imprescindível para a manutenção da Ordem, a Liderança Instrumental é a que mais provoca motins e revoltas.

LIDERANÇA PESSOAL

Esta é a Liderança que você tem sobre si mesmo, sobre suas ideias que se transformam em princípios, sobre os princípios que se transformam em julgamentos, e sobre os julgamentos que se transformam em atitudes.

A Liderança Pessoal é quem autoriza você para determinar QUEM deve ser respeitado como uma Liderança e COMO esta Liderança externa será vivenciada por sua própria soberania individual.

Uma Liderança Pessoal EXAGERADA pode fechar o sujeito para as boas influências do mundo, além de colocá-lo em um conflito permanente e desgastante com as demais Lideranças que existem à sua volta.

Uma Liderança Pessoal INSUFICIENTE coloca o sujeito sob o risco de ser dominado por qualquer Liderança Consensual e Moral que se apresente, principalmente (e especialmente) quando o Consenso e a Moral são representados por pessoas pouco escrupulosas.

Tanto no Exagero quanto na Insuficiência, o perigo maior da Liderança Pessoal está na incompetência Ética e Cognitiva do indivíduo: quando você decide estabelecer-se como líder de si mesmo, esta decisão está embasada em que volume de estudos, vivências e deliberações conscientes? Que valor pode haver em uma Liderança Pessoal que confunde Sentimentos com Raciocínios, e se isenta da responsabilidade de agir fundada em Conhecimento, Sabedoria e Inteligência?

Podemos acreditar estar no encargo de alguma Liderança Pessoal, mas até que ponto seu autopertencimento não passa de um reflexo das Lideranças Familiais e Morais e que lhe influenciaram desde sempre e ainda influenciam?

Ainda que a maioria de nós seja essencialmente leiga nos termos das Lideranças Consensual e Instrumental, por exemplo, cada um se acha um verdadeiro especialista quando se trata de sua Liderança Pessoal. Infelizmente, não existe uma esfera “ilegal” na Liderança Pessoal: a Liderança Pessoal transita impune pelo campo das convicções oficializadas, e suas condenações são retóricas e emocionais.

Finalmente, existe uma incompatibilidade imensa entre a Liderança Pessoal e as demais formas de Liderança.

Os vários graus de coerção manifestados por uma Liderança Familial, Moral, Consensual ou Instrumental são incompatíveis com a autonomia necessária para que a Liderança Pessoal seja decisiva nas suas escolhas. Levado ao extremo, este questionamento deu origem às teorias sobre Sistemas Políticos Anarquistas, onde nenhuma forma de Liderança externa é ou será legítima algum dia.

Não raramente, a soberania de seu autopertencimento entrará em conflito com todas as formas externas de Liderança – algo que foi muito bem examinado por Henry David Thoreau em “A Desobediência Civil”, e pelo Objetivismo de Ayn Rand (para quem “a menor minoria de uma sociedade é o indivíduo”).

 SOBRE A LEGITIMIDADE DA LIDERANÇA

O dilema mais fundamental de qualquer forma de Liderança está em se determinar se ela LEGÍTIMA ou ILEGÍTIMA – e de que maneira podemos realizar esse julgamento.

Nem sempre os comandos da Liderança estão alinhados à Razão e à Lógica. A Liderança pode ser prática e focada, mas isso não garante que seja isenta de falhas ou que seus propósitos sejam contraproducentes.

A legitimidade de uma Liderança também pode ser corroída por falhas de comunicação. Por exemplo: quando uma autoridade emite um comando, aquele que deverá obedecê-lo o fará segundo a Natureza da Liderança EXPRESSA e o padrão da Liderança COMPREENDIDA. E é notório que, em nossos relacionamentos interpessoais, nem sempre o expressado é compreendido como deveria.

Muitas vezes, achamos estar exercendo uma Liderança Instrumental, enquanto o outro nos percebe apenas como uma Liderança Consensual. Os atritos serão inevitáveis: o dever de obedecer não será compreendido, e as fraturas no fluxo hierárquico comprometerão os relacionamentos interpessoais, a produtividade e a prosperidade.

Uma Liderança pode ser falha também quando o formato é aplicado no contexto errado. Uma equipe de vendas, por exemplo, suscita uma Liderança majoritariamente Moral e Consensual, e apenas eventualmente Instrumental. Ao lidar com pessoas que devem vender para faturar, uma Liderança Instrumental pode detonar a motivação de toda uma cadeia logística.

Por outro lado, em um cenário diverso – um cirurgião durante uma operação tensa e arriscada, por exemplo –, uma Liderança Consensual transmitirá insegurança à equipe e resultará em desperdícios imperdoáveis de tempo. Um cirurgião deve ser um Líder Instrumental com forte Liderança Pessoal. Não por outro motivo ele é auxiliado no procedimento por um “instrumentador”. Algo similar se aplica à atuação de um policial ou um juiz: ele deve investir-se de uma Liderança Instrumental, sempre. Caso contrário, violará a própria substância que compõe sua atividade.

Nos lares, a Liderança mais eficaz consiste em uma combinação de Liderança Familial, Moral e Instrumental. Crianças de lares “Autoritativos” apresentam melhor rendimento escolar que crianças de lares permissivos, onde predomina uma Liderança mais Consensual.

Como mencionado anteriormente, o conceito de Liderança provoca uma reflexão profunda sobre Liberdade: se estaremos sempre sob alguma forma de Liderança, então qual será a extensão da sua Liberdade? Ela certamente jamais será plena. E ao guiar-se pela “maior liberdade individual possível”, obedecendo apenas à sua Liderança Pessoal, você estará se dirigindo para o progresso do Caráter ou para o caos e a autodestruição?

Em contrapartida, ao descartar as experiências contidas nas demais formas de Liderança, a veneração incondicional da Liderança Pessoal expõe o indivíduo ao risco de erros tolos, além de poder transformar-se facilmente em autoritarismo e em uma vida guiada apenas pelos prazeres imediatos (hedonismo).

No Caso das Cadeirinhas, o que ocorreu foi a opção do Estado em eximir-se de sua Liderança Instrumental quanto à obrigatoriedade do uso de um equipamento de segurança, transferindo o Direito de Escolha para a Liderança Pessoal de cada cidadão. Em um país tão acostumado a paternalismos, é óbvio que esta decisão produziu argumentações acaloradas.

Apesar de a medida ser louvável, pois estimula o autopertencimento e a auto-responsabilidade, quando o Estado se livra de parte de sua Liderança Instrumental, sempre somos acometidos com a preocupação quanto à capacidade dos indivíduos em serem bons líderes de si mesmos.

Não raramente, o Líder Pessoal absoluto, egocentrado nos valores que incorporou por interesse, preferência e conveniência, cedo ou tarde se tornará incapaz de retardar o prazer para alcançar uma satisfação maior adiante. Este é o tipo de Subjetivismo que percebemos nos discursos autovitimistas das pessoas que adotaram a Liderança Pessoal como o único guia de sua vontade: para escapar do sofrimento e do julgamento externo, elas terceirizam todas as responsabilidades, isentando-se das consequências de suas escolhas.

É de se pensar até que ponto possuímos Liderança Pessoal suficiente para manusear a ausência de Liderança Instrumental do Estado. Neste ponto, as discussões sobre posse e porte de armas podem ser colocadas na mesma caixa das discussões do Caso das Cadeirinhas.

Observando as várias formas de Liderança que existem, e como pode ser complicado determinar qual deve ser empregada, e onde, e por quanto tempo, percebemos que nosso grande desafio consiste em descobrir uma maneira de conciliar os cinco tipos de Liderança para que produzam aprendizado e outros benefícios para você e para a sociedade como um todo.

A resposta para este equilíbrio não é impossível, mas está longe de ser fácil.

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