Há alguns anos, tive o prazer de acompanhar Guilherme Cavallari e alguns amigos em uma expedição pela Patagônia Chilena durante duas semanas. Foram mais de 160 km de trekking selvagem sendo guiados por mapas, bússolas, ventos, frio intenso e extremos de esforço de tirar o fôlego.
Carregando cada um uma mochila pesando mais de 20 quilos de mantimentos e equipamentos de sobrevivência, tivemos contato com nossos limites, paisagens magníficas e aprendizados suficientes para pelo menos três vidas inteiras.
Em 2013, Cavallari trocou a rotina de sua base de operações na agitada metrópole de São Paulo por uma fazenda em Gonçalves, cidade de 4 mil habitantes localizada no sul de Minas Gerais. Estabelecido em seu novo reduto cercado por florestas, montanhas e livros, Guilherme mantém uma rotina disciplinada de condicionamento físico enquanto continua a operar sua empresa, a Kalapalo Editora, e ministrar cursos de esportes de aventura.
Culto, focado e vivendo em intenso contato com a natureza, Cavallari certamente é um ponto afastado da curva, e gentilmente cedeu um tempo para conversar sobre isso com os leitores de ManhoodBrasil. O resultado você confere a seguir:
[MANHOODBRASIL] – Vamos combinar: a profissão que você escolheu não segue exatamente o protótipo escola-faculdade-pós-graduação que a maioria de nós se habituou a associar ao mercado de trabalho. O que levou você a decidir por esse ramo de atividade fora dos padrões?
[GUILHERME CAVALLARI] – Não me vejo fora dos padrões. Trabalho, ganho dinheiro, gasto dinheiro, pago contas e tudo mais. Acho até engraçado as pessoas que pensam que vivo de brisa… E acho ainda mais difícil identificar com precisão qual é minha profissão. Mas a escolha de viver como uma espécie de aventureiro profissional, escritor, produtor de filmes, instrutor de técnicas de aventura e desenvolvedor de conteúdo informativo aconteceu premeditadamente. Desde muito cedo, ainda na infância, eu já queria misturar contato com a natureza, esporte e literatura e tentar viver disso.
[MANHOODBRASIL] – Dentro dessa miríade de ocupações, como você se organiza?
[GUILHERME CAVALLARI] – Normalmente, uso parte das manhãs para praticar esporte e parte para responder e-mails, mensagens, publicar conteúdo na internet e outras burocracias. À tarde, leio e escrevo até o fim do dia. Nos finais de semana, é comum ter algum grupo no Refúgio Kalapalo, a escola de aventura que montei em casa.
[MANHOODBRASIL] – Morar em um local mais afastado limita suas oportunidades e amplia suas dificuldades?
[GUILHERME CAVALLARI] – Atuo em muitas áreas distintas, então as dificuldades e as oportunidades também variam muito. Sinto que a existência virtual, online, é uma das maiores oportunidades e também uma das maiores dificuldades que enfrentamos: é fácil perder tempo demais administrando o excesso de comunicabilidade e acessibilidade que a internet proporciona. Vejo muita gente se perder no labirinto da popularidade de aplicativos e redes sociais, gente que no começo queria divulgar seu trabalho e acaba trabalhando para ficar popular. Mas, pessoalmente, minha luta diária é de autoconhecimento, na tentativa de escrever cada vez melhor e com mais sinceridade. Abomino mentira, avareza, mesquinhez e ignorância.
[MANHOODBRASIL] – Você prega bastante esse mantra do autoconhecimento e do autodescobrimento. Consegue identificar algum ponto de ruptura em sua trajetória, um momento a partir do qual passou a ver tudo por uma ótica diferente?
[GUILHERME CAVALLARI] – Por uma questão de tempo de exposição, considero o projeto Transpatagônia, quando passei seis meses sozinho pedalando uma mountain bike e acampando por toda a Patagônia e a Terra do Fogo, um divisor de águas. Essa viagem gerou um livro (Transpatagônia: pumas não comem ciclistas) e um filme-documentário de mesmo nome. Mas antes disso vivi dois anos nos Estados Unidos, dois anos na Inglaterra, dois anos na Alemanha, nove meses em Israel e cinco meses na Itália. Essas andanças e experiências moldaram quem eu sou hoje.
[MANHOODBRASIL] – Existe alguma qualidade específica que seja um pré-requisito para alguém que deseja virar um aventureiro profissional?
[GUILHERME CAVALLARI] – Considero a sinceridade uma qualidade fundamental para tudo na vida. Eu não escolheria outra ocupação distinta desta que tenho, e não vejo diferença entre meu trabalho e meu lazer. Ambos são a mesma coisa. Se recebesse uma visita em minha casa, alguém de outra cidade por exemplo, o primeiro lugar levaria essa pessoa para conhecer seria a paisagem da fazenda onde moro.
[MANHOODBRASIL] – Você define um objetivo para o seu trabalho?
[GUILHERME CAVALLARI] – Aperfeiçoar-me. Acredito todos temos muitos potenciais e que podemos desenvolvê-los ao longo do tempo. E esse é meu principal objetivo na vida e no trabalho, se não for o único: conhecer e alcançar meus potenciais.
[MANHOODBRASIL] – Aperfeiçoamento exige prática e teoria. Na parte teórica, a leitura é fundamental, e sei que você sabe bem disso. [O Refúgio Kalapalo possui paredes repletas de prateleiras com carreiras de tomos e obras diversas da literatura mundial]. Então quais livros na sua prateleira estão implorando para serem lidos?
[GUILHERME CAVALLARI] – Ufa, são muitos! Acabei de adquirir vinte títulos sobre a Mongólia, lugar que tenho interesse em conhecer e explorar. Esses estão agora no topo da lista. Mas gosto muito de relatos de viajantes do passado e tenho vários livros sobre esse tema na fila. E leio de tudo. No momento, por exemplo, ando encantado com um trecho de um longo poema do inglês T. S. Eliot: “We shall not cease from exploration, and the end of all exploring will be to arrive where we started, and know the place for the first time”… Que traduzo como: “Nós nunca deixaremos de explorar, e o final de toda nossa exploração será chegar ao ponto de partida e descobrir o lugar pela primeira vez.”
[MANHOODBRASIL] – Você já escreveu dezenas de textos, livros e guias de trilhas, viagem e aventura, mas “Transpatagônia: pumas não comem ciclistas” foi seu primeiro trabalho de literatura. O que achou do desafio de escrevê-lo?
[GUILHERME CAVALLARI] – Transpatagônia custou muito empenho e causou muita incerteza. Terminá-lo foi um esforço bem maior que os seis meses de mountain bike por toda a Patagônia e a Terra do Fogo. Tenho mais orgulho do livro que da viagem, porque para assentá-lo tive que desbravar áreas não mapeadas de mim mesmo.
[MANHOODBRASIL] – Algum escritor lhe serviu de inspiração?
[GUILHERME CAVALLARI] – Muitos! Em especial, Bruce Chatwin.
[MANHOODBRASIL] – O que fez com que você finalmente decidisse colocar mãos à obra para começar este projeto?
[GUILHERME CAVALLARI] – A proximidade dos 50 anos e a morte da minha mãe. Simplesmente rasguei a agenda e me dediquei ao projeto 24 horas por dia até terminá-lo. Quando estou em processo de criação, escrevo todo dia, toda hora, mentalmente ou no computador. Não tenho metas diárias: alguns dias, às vezes por semanas, não consigo produzir uma linha. Em outros dias, produzo 10 páginas prontas.
[MANHOODBRASIL] – Já se sentou para escrever e deparou com a famosa frase “deu branco!”? Como fez para vencer este bloqueio?
[GUILHERME CAVALLARI] – Regularmente, e tento não lutar contra. Se não consigo escrever, não escrevo. Vou ler algo que está relacionado com o que estou tentando escrever, pesquisar. Ou às vezes vou ler algo completamente diferente.
[MANHOODBRASIL] – Qual foi a maior dificuldade em Transpatagônia?
[GUILHERME CAVALLARI] – O maior obstáculo é sempre o começo. Tenho uma frase do Ernest Hemingway como modelo: “Comece escrevendo a frase mais verdadeira que você conhece” e isso abre as portas do resto do texto. Não existe prazer maior do que dizer a si mesmo: “terminei o livro”. Levei dois anos para dizer isso.
[MANHOODBRASIL] – Você deixou o livro “amadurecer na gaveta por um tempo” depois de escrito ou procurou publicá-lo imediatamente?
[GUILHERME CAVALLARI] – Depois que rematei a última linha, voltei para o começo e reescrevi o livro todo imediatamente. Em seguida, ele ficou um mês na gaveta antes de ser reescrito uma terceira vez.
[MANHOODBRASIL] – Existe alguma mensagem oculta na obra que você gostaria que seus leitores captassem?
[GUILHERME CAVALLARI] – A mensagem não está oculta, está bem clara… Diz respeito à busca de nossa natureza interior.
[MANHOODBRASIL] – Está planejando alguma aventura para os próximos meses?
[Guilherme Cavallari] – Em novembro próximo vou lançar meu segundo livro de literatura de viagem e aventura, Highlands: por baixo do saiote escocês, narrando a travessia solo em trekking de 450 km que fiz durante 23 dias nas Highlands da Escócia. Um livro que considero “mais maduro” do que Transpatagônia.
[MANHOODBRASIL] – Onde se vê daqui a cinco ou dez anos?
[GUILHERME CAVALLARI] – Exatamente onde estou.
[MANHOODBRASIL] – Observando sua estrada de cinco décadas de viagens, aventuras e escritas, se pudesse encontrar consigo mesmo aos 20 anos de idade, qual conselho notável daria para o jovem Guilherme?
[GUILHERME CAVALLARI] – “Tenha paciência”.
[MANHOODBRASIL] – E para alguém que está iniciando a carreira no mercado de trabalho?
[GUILHERME CAVALLARI] – Não trabalhe tanto!
[MANHOODBRASIL] – Guilherme, agradecemos imensamente sua disponibilidade e lhe desejamos todo sucesso em seus projetos futuros. Caso nossos leitores queiram descobrir mais sobre seu trabalho, onde podem procurar?
[GUILHERME CAVALLARI] – Recomendo consultar o site da Kalapalo Editora ou direto pelo email vendas@kalapalo.com.br.