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Talvez nunca antes na história desses país os recorrentes embates na Internet tenham mostrado de modo tão claro nossa admirável habilidade de nos submetermos à polarização político-ideológica.
Em Uncivil Agreement: How Politics Became Our Identity (University of Chicago Press, 2018), a escritora Liliana Mason discursou sobre este fenômeno, retratando como a Identidade é capaz de deslocar-se de um universo Pessoal para uma esfera Social que releva principalmente as diferenças capazes de dividir uma nação inteira. No livro, Mason – atualmente trabalhando como professora de Ciências Políticas na Universidade de Maryland – afirma que as principais consequências da Identidade Social Ideológica são a formação de “bolhas” de convivência interpessoal e respostas emocionais intensas ao desenrolar dos processos eleitorais.
Segundo a cientista, a eleição de Trump em particular foi um marco da Identidade Social nos EUA, mas nós, brasileiros, vivemos a dicotomia das Identidades Sociais à flor da pele há quase 25 anos: em 1994, a campanha de Fernando Henrique Cardoso foi fortemente balizada no sentimento de “nós contra eles” – sendo que “eles” era representado pelo dueto Lula e Mercadante. Na época, o discurso funcionou tão bem que FHC levou a eleição ainda no primeiro turno, com 54% dos votos válidos. Em 1998, para enfrentar a dupla Lula e Brizola, FHC repetiu a receita da Identidade Social, elegendo-se presidente com 53% dos votos, novamente sem necessidade de uma segunda rodada.
Lula aprendeu a receita e utilizou o feitiço contra o feiticeiro em 2002. Apesar de seu adversário, José “Sr. Burns” Serra, ter tentado fisgar alguns votos fazendo propaganda do empoderamento feminino desfilando com a bela Rita Camata à tira-colo, o discurso apelativo da Identidade Social do “nós contra eles” funcionou como uma luva. Nas eleições subsequentes, o PT utilizaria este subterfúgio para manter sua hegemonia no cenário das eleições presidenciais.
Sem saber – ou sabendo – Lula e seus asseclas estavam reproduzindo uma experiência realizada décadas atrás em um distante estado do meio-oeste americano.
A Democracia das Identidades
No verão de 1954, uma equipe liderada pelo psicólogo social Muzafer Sherif recrutou 22 garotos entre 11-12 anos de idade na cidade de Oklahoma e os enviou para dois acampamentos vizinhos no Parque Estadual Robbers Cave. Os meninos haviam sido cuidadosamente selecionados para serem quase equivalentes em termos sociais, educacionais, físicos e emocionais. Eram todos brancos, protestantes, de classe média e completos desconhecidos uns dos outros. O grupo então foi dividido ao meio, sendo um deles foi batizado Eagles e o outro, Rattles. Sem que soubessem, os meninos participariam de um experimento psicológico durante 3 semanas.
Na primeira semana, os grupos foram mantidos separados, e os garotos construíram vínculos entre si dentro do grupo. Na segunda semana, os grupos ficaram sabendo da existência um do outro, sendo reunidos em um acampamento comum. Assim que se encontraram, começaram a se referir uns aos outros como “intrusos”, “de fora” e “aqueles meninos do outro lado do parque”. Cada um dos grupos estava ansioso por um desafio para provar que sua “tribo” era superior àquela “de fora”. Os pesquisadores então organizaram um torneio. No segundo dia da competição, os grupos já estavam referindo um a outro por meio de xingamentos e raramente se misturavam.
Nos dias seguintes, o relacionamento entre os grupos deteriorou rapidamente. Os Eagles queimaram a bandeira dos Rattles. Os Rattles invadiram o alojamento dos Eagles no meio da noite. Os Eagles invadiram o alojamento dos Rattles no meio do dia. Garotos de ambos os lados passaram a juntar pedras para usar em combate, e brigas com socos e pontapés começaram a irromper. A esta altura, os pesquisadores interromperam a interação e separaram novamente as tribos em seus respectivos acampamentos.
Foram necessárias apenas duas semanas, um pequeno isolamento e uma competição tola para que 22 garotos profundamente semelhantes entre si, que nunca haviam se encontrado antes, se transformassem em duas tribos rivais prontas para trucidar uma à outra.
Curiosamente, no começo da terceira semana, a situação de conflito havia afetado a capacidade dos meninos em julgar objetivamente a realidade: eles receberam a tarefa de coletar o maior número possível de sementes de feijão espalhadas em uma área. A coleta de cada garoto foi filmada e então, em uma sala reservada, um por um assistiu a um filme de 5 segundos apresentando o total de grãos juntados por meninos do seu grupo e por meninos do grupo adversário. Quando solicitados para estimar a quantidade de grãos ajuntada no trecho do filme apresentado, os meninos sempre estimavam uma quantidade maior de sementes quando viam alguém do seu grupo, e menor quando viam alguém do grupo oposto. Entretanto, sem que tivessem noção disso, os pesquisadores lhes exibiam exatamente o mesmo o filme todas as vezes.
O experimento de Muzafer Sherif foi um dos primeiros a observar de perto o que determina a Identidade Social e como ela pode desandar para enfrentamentos físicos, levando à elaboração da Teoria do Conflito Realístico ou Teoria do Conflito Grupal.
Como brasileiros espertos e malandros em plena Era da Informação, tendemos a nos achar mais “safos” que um bando de meninos americanos caipiras da década de 1950. Em alguns sentidos, somos, de fato. Mas a lição exposta por Muzafer Sherif tem bastante a ver com a maneira como expressamos nossa Identidade Social – ainda que isso lhe incomode.
Nas manifestações de rua e nos posts nas redes sociais, a luta ideológica travada entre Esquerda e Direita – ou entre Capitalismo e Comunismo – tem raízes profundas na construção da Identidade Social e na Teoria do Conflito Grupal de Sherif. Quando um dos lados diz que “nós iremos vencer a maldade” e outro afirma que “nós iremos vencer a opressão”, eles estão vociferando o bom e velho divide et impera dos antigos imperadores e generais romanos. Entre uma fatiada e outra, quem ficará com a conta do prejuízo?
Para a cientista política Liliana Mason, o maior problema da Identidade Social fundada no “nós contra eles” está no risco de nos permitirmos violar regras de tolerância e respeito que, se dependessem exclusivamente dos valores embutidos em nossa Identidade Pessoal, jamais violaríamos. Construída sobre este terreno inflamado, a Teoria do Conflito Grupal baseia-se não na confiança honrada entre os semelhantes, mas na desconfiança estereotipada com os diferentes, e seu caráter volátil certamente prejudicará nossa capacidade de julgar a realidade como uma nação que almeja algo mais para seu futuro que apenas jogar pedras nas pessoas do outro lado do acampamento.
A destruição de uma metade de nós jamais será um troféu suficiente – ou digno – para o progresso de todos. Se continuarmos no presente rumo, trilhando o caminho de partidarismos irresponsáveis e seduzidos em ambos os lados por inúmeros motivos errados, existe uma grande possibilidade de que a vitória de qualquer banda represente outra derrota recíproca simultânea em uma longa série de fracassos onde seguimos digladiando “nós contra eles” sem nunca entender direito quem são “eles” ou mesmo quem somos “nós”.
Qualquer que seja sua orientação partidária, certamente vale refletir a respeito disso.
Parabéns pelo site e pelas dicas está ajudando muito! 470392672
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